quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Alerta! Automutilação pode acontecer dentro de sua casa

Crianças e adolescentes disfarçam machucados, mas estão se cortando para fugir de angústias emocionais.

Virgínia Martin - 10/1/2018 

A cena pode parecer comum: jovens usando camisas de manga comprida em pleno calor ou adolescentes com os braços enfaixados. O que poucos sabem é que por “de baixo dos panos” existe uma dor silenciosa, manifestada em mutilações pelo corpo. Trata-se da automutilação sem intenção suicida, um comportamento destrutivo e sorrateiro que tem se estendido pela população do país.

No Brasil, os estudos sobre automutilação ainda são escassos. A saúde pública brasileira ainda não se deu conta da importância de analisar esse fenômeno, já considerado um problema de saúde pública em outros países, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Austrália.

Existem vários métodos usados por quem pratica a Automutilação Sem Intenção Suicida (ASIS): queimadura, corte, bater alguma parte do corpo, arranhão, machucar feridas já existentes, quebrar um osso e amputar um membro. Os dois últimos são vistos como casos mais graves, em decorrência de surto psicótico. O método mais predominante no mundo, inclusive no Brasil, são cortes em alguma região do corpo, geralmente, nos braços, pernas e barriga. Infelizmente, a maioria dos pais sequer percebe que os filhos estão se cortando com lâminas de barbear, canivetes ou outros objetos cortantes.

– Dou palestras em todo o Brasil sobre o tema Defesa da Infância e passei também a abordar a automutilação. Pesquisei e conclui que mais de 30% dos jovens e adolescentes que se mutilam são evangélicos e estão dentro das igrejas. É comum, enquanto estou falando, ver jovens e adolescentes se levantarem chorando para vir me entregar suas lâminas – alerta Damares Regina Alves, que trabalha como assessora jurídica da Frente Parlamentar em Defesa da Família e Apoio à Vida, no Senado Federal.

Damares conta que, em 2016, foi procurada por um grupo de pais, cujos filhos estavam se mutilando. Outros filhos haviam se suicidado. Ela se surpreendeu com as fotos que exemplificavam as mutilações e o drama de crianças e adolescentes de todas as idades. Sem conseguir mais dormir devido ao forte impacto, Damares trabalhou para fundar o Movimento Brasil Sem Dor, que promove palestras e seminários sobre o tema em todo o país a fim de conscientizar professores, educadores, policiais, conselheiros tutelares, médicos, pais, líderes religiosos entre outros.

– Os pais procuravam o Senado Federal na busca de uma legislação mais rígida para punir quem incita ou ajuda crianças e a se machucarem. E também cobravam a criação de políticas públicas de prevenção e combate a automutilação – lembra Damares.

A partir dessas reivindicações, uma pesquisa foi feita nas escolas da cidade de Brasília. O estudo, elaborado pelo Senado, revelou que, dentre os alunos das escolas pesquisadas, no mínimo, cinco crianças ou adolescentes estavam se mutilando. Após audiências públicas e debates, ficou clara a urgência de uma ação efetiva do governo, que deu origem a Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI dos Maus-tratos de Crianças e Adolescentes, presidida pelo senador Magno Malta.


A cartilha orienta pais e professores, disponível desde dezembro de 2017

A assessora ainda destaca que conheceu mais de 70 grupos de Whatsapp com o nome “Anjos Suicidas”. No ilimitado espaço virtual, crianças, jovens e adolescentes, usam e abusam do aplicativo para contar suas experiências e aprender a como se machucar. Detalhe: muitos pais ignoram que seus filhos estejam naqueles grupos.

– Conversei com muitos adolescentes que confessaram a razão das mutilações. Muitos deles disseram que se cortam em virtude da ausência familiar – destaca.

Quando um indivíduo pratica a ASIS, ele se baseia em uma série de motivações. O pesquisador canadense, Dr. David Klonsk, criou uma escala em que lista 13 motivações citadas pelos entrevistados. Entre elas, as duas mais prevalentes no mundo são: o alívio de uma dor emocional (angústia) e a autopunição. Como não conseguem lidar com a dor emocional, a dor física se faz mais “fácil” de suportar do que a angústia, como se fosse uma “transferência” dessa dor subjetiva para uma mais concreta, no próprio corpo.

Para o dr. Carlos Henrique de Aragão Neto, psicólogo clínico, membro da International Society for the Study of Self-Injury (ISSS), da International Association for Suicide Prevention (IASP) e da Associação Brasileira para Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS), é preciso urgentemente elaborar trabalhos científicos de epidemiologia para saber a dimensão do problema, suas características no Brasil e assim desenvolver planos de prevenção e de tratamento que possam alcançar toda a população, não só aqueles que podem pagar por um serviço particular.

– A ASIS ocorre em todas as classes sociais, com todas as raças. Nesse sentido, foi muito importante desenvolvermos uma cartilha por meio da iniciativa da CPI dos Maus-tratos a Crianças e Adolescentes do Senado Federal. Se a distribuição for bem-feita, teremos um material didático para pais e professores sobre o tema – diz o estudioso, também autor da cartilha sobre Automutilação, lançada em dezembro pela CPI.

Nos últimos três anos, dr. Aragão Neto, por observação clínica, viu os casos de jovens com ASIS aumentarem estupidamente. E decidiu desenvolver sua tese de doutorado, relacionando à ASIS com o comportamento suicida.

O motivo é que uma parte desses que praticam ASIS seguirão para o comportamento suicida, caso não sejam ajudados e tratados – lamenta o especialista, com formação em Luto, mestre em Antropologia e doutorando em Psicologia Clínica e Cultura.

Segundo a Drª. Marisa Lobo, psicóloga clínica, pós-graduada em Saúde Mental e Filosofia em Direitos Humanos, a ASIS é um comportamento perigoso que pode levar a infecções graves ou até a morte. Mesmo que não exista conscientemente a intenção de suicídio, o ato pode tirar a vida, dependendo da intensidade ou periculosidade da autoagressão. E pode ser, sim, decorrente de uma dor emocional, de um modismo ou de um transtorno real psicológico.

– Temos sempre que analisar o contexto. De qualquer forma não pode ser considerado normal alguém se machucar propositadamente nem pode ser visto como algo passageiro ou como modismo, pois não é. O mutilado não consegue aliviar a tensão, o estresse emocional e se corta para que a dor física alivie a emocional. E apesar dessa pessoa estar consciente de suas lesões e cicatrizes, busca escondê-las dos outros – explica a psicóloga.

Outro fator que deve ser investigado está relacionado à associação entre dor e prazer. O comportamento autodestrutivo constantemente carrega uma carga de prazer associado, muito comum de ser encontrado em masoquistas. Pessoas que se automutilam podem ter sido submetidas à relação entre dor e alívio; o que gerou um forte condicionamento mental
que faz com que a dor seja o gatilho para a percepção do prazer. Quem se automutila pode ter passado por um período de estresse após um internamento, por exemplo, e desenvolvido esse comportamento de defesa.

– Parece confuso para o leitor entender isso, mas a psique humana é complexa e pode, por associação, condicionar a dor física com o alívio da dor emocional. A pessoa também pode associar e condicionar um castigo físico sofrido na infância a um pedido de desculpas, esclarece.

Entre motivos diversos, vale considerar que adolescentes e jovens também se automutilam por pressão de amigos em um contexto de competição, de jogo, como o da “Baleia Azul” e até mesmo como exibicionismo. Entre meninas, é comum compararem suas marcas nos punhos e nas pernas.

Principalmente na escola, existem muitas cobranças e muitos conflitos geradores de dor emocional, que atingem valores e expectativas dos estudantes. Se não dão conta disso, podem tentar aliviar seus tormentos por meio de autoagressão.


“O mutilado não consegue aliviar a tensão, o estresse emocional e se corta para que a dor física alivie a emocional”, explica Marisa Lobo

Drª. Marisa adverte que, segundo experiência em consultório, a realidade tem demonstrado que muitos daqueles que se automutilam padecem de desrespeito e falta de atenção de gestores de educação. Para a igreja, falta conhecimento em lidar com algo que é entendido como afronta à fé. Para a escola, conflitos ligados à religião cristã não são objetos de preocupação. Enquanto isso, a prática aumenta, se fortifica e se banaliza. E a sociedade se debilita diante do óbvio: há muitos adolescentes e jovens precisando de ajuda. Não se pode desistir deles!

O QUE FAZER

– Reconhecer que este mal existe e que é necessário encará-lo de frente e com coragem.

– Evitar resolver o problema com desespero, gritos ou punindo ainda mais os jovens e os adolescentes que praticam a autolesão. Não adianta usar violência, frases de efeito ou catequeses. Quem está em sofrimento grave necessita de acolhimento, uma boa escuta (sem preconceitos e com atenção plena) e ajuda para conseguir tratamentos com profissionais da saúde.

– Diante de qualquer sinal de sofrimento, mudanças de comportamento, isolamento, apatia dos jovens, procurar um espaço mais privado com tempo necessário para uma conversa, no sentido de perguntar o quê está acontecendo e como pode ajudar.

– Mostrar preocupação, não desqualificar o sofrimento alheio, se mostrar disponível, são atitudes que ajudarão muito aqueles que estão perdidos em seus sofrimentos e não possuem um repertório de habilidades emocionais e sociais para enfrentar certos traumas.

– Com ajuda necessária da rede de apoio social (pais, amigos, escola, igreja) e dos profissionais de saúde, é possível sair desse quadro e ter uma melhor qualidade de vida.

– O mais eficaz é associar psicoterapia e medicação. A psicoterapia, nestes casos, tem como um dos objetivos ajudar o paciente a identificar outras formas de lidar com frustrações que sejam mais eficazes do que seu comportamento.

– Não há ainda uma medicação específica indicada para que o paciente pare de se mutilar. Entretanto, a medicação pode ser indicada para alívio dos sintomas depressivos e ansiosos, para diminuir a compulsividade e para ajudar a resistir a vontade de se machucar.

– Família e escola devem colaborar na identificação e no entendimento do conflito a fim de convencer a pessoa a buscar ajuda voluntariamente. Caso contrário, uma vida pode estar correndo risco de ter um fim trágico.

PERFIL DOS MUTILADOS

– Geralmente, tendem a ter grandes dificuldades para se expressar verbal ou emocionalmente.

– São tímidos, não conseguem falar sobre suas angústias, têm dúvidas, questionamentos, conflitos. Não conseguem chorar ou desabafar diante de outras pessoas.

– Não possuem amor-próprio, têm sentimentos de menos-valia, se acham incapazes, um fracasso.

– Não conseguem conviver com os demais.

– Embora não demonstrem, são muito sensíveis, têm complexo de inferioridade.

– Preferem se afastar para não gerar decepções nas pessoas.

– Aos poucos, vão se isolando e gerando em si mais dor.

REALIDADE NO CONTEXTO RELIGIOSO

– A Igreja terá que aprender a lidar com esses jovens e adolescentes em sofrimento. Terá que contextualizar suas mensagens e seus ensinamentos, pois está diante de mais um novo e agressivo desafio.

– Será urgente elaborar uma orientação específica que possa auxiliar pastores e líderes de ministérios de adolescentes e de jovens.

ESTUDOS

– O conceito de Automutilação Sem Intenção Suicida (ASIS) é derivado do inglês Nonsuicidal Self-Injury (NSSI), cuja definição é: “dano intencional a uma parte do corpo, sem intenção suicida e para propósitos não validados socialmente” (Klonsky et al, 2011; Nock & Favazza, 2009).

– A prevalência da ASIS aumentou nas últimas três décadas, principalmente nas populações de adolescentes e adultos jovens (Klonsk, et al., 2011; Scoliers, et al.,2009).

– As evidências em estudos internacionais apontam uma relação importante entre automutilação e comportamento suicida (Guerreiro & Sampaio, 2013; Muehlenkamp
& Gutierrez, 2007; Whitlock et al., 2012).

– Em amostras comunitárias de adolescentes (12 e 18 anos), a prevalência da automutilação foi estimada em 18% (Muehlenkamp, ​​Claes, Havertape e Plener, 2012).

– A mesma pesquisa indica que a ASIS tende a ocorrer primeiro durante a adolescência com idade média de início entre 14 e 15 anos (Baetens, Claes, Muehlenkamp, ​​Grietens e Onghena, 2011; Heath, Toste, Nedecheva e Charlebois, 2009).

Fonte: https://pleno.news/comportamento/alerta-automutilacao-pode-acontecer-dentro-de-sua-casa.html

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